Geração Hematogênica

Nós temos o santo direito de ser feio, sem graça e até antipáticos.
Com essa afirmação, reconheço o direito de cada um ser ele mesmo. Não pense que a vida cristã nos obriga a sermos quem não somos de fato ou quem não queremos ser, ou seja, a vida cristã não nos impõe um ideal a que tenhamos que nos adaptar. Muito pelo contrário.
Infelizmente, a maioria de nós, cristãos ou não, quando  não conseguem  identificar-se com a imagem que fazem dela, temem não serem amados, pensam ser mesmo imperfeitos, todavia, nos grupos de cristãos, isso se percebe com maior clareza, dada as exigências de costumes, de doutrinas, de relacionamentos e até de mercado.
Descobri, talvez tardiamente, que entre nós, povo da igreja dos crentes, não se trata de ter pessoas perfeitas. Desejando ou não, estamos ligados uns aos outros, inclusive, baseado nas nossas imperfeições.
Somos todos feitos de uma mistura de bem  e de mal, de trevas e de luz, de amor e de ódio. Deveríamos poder crescer sem medo, rumo à libertação e percebendo em nós, as formas de amor que estão escondidas em si e, por isso, ou por falta disso, pouco crescimento em nós, pouca ou nenhuma possibilidade de progresso e um mundo de coisas ainda por ser purificado no nosso interior.
Eu mesmo passei toda a minha adolescência e juventude, cantando nas igrejas, vivendo conforme os desejos dos outros, conforme os desejos mercadológicos e outros, comportando-me como um personagem  criado pelo público e que eu, obedientemente, assumi a partir do apelo profundo de mim mesmo  e dos outros.
Hoje percebo que ser livre em Cristo é descobrir e amar o segredo de nossa própria pessoa, naquilo que temos e que nos faz únicos. É assim que nos tornamos livres para Deus.
Percebo claramente que, somos sim, julgados, classificados em categorias, questionados se somos cidadãos de primeira ou de segunda, se somos “crentes” de primeira ou de terceira classe, julgados  a nada espirituais, muito carnais, se somos bons ou se somos medianos no que nos propomos a fazer para Deus… se a nossa roupa corresponde à nossa igreja e a nossa fé,  (Ufa!! Isso me dá quatro tipos de preguiça! ) e isso, nos OBRIGA a usarmos sempre uma máscara. Isso nos convence a escondermo-nos  atrás de uma máscara (  a mais bonitinha delas  é a de santo!) à fim de cabermos, de sermos aceitos e – acreditem – admirados.
Foi assim que criamos uma geração de “crentes” sem nenhum traço forte quanto personalidade. É uma geração que espera escrever suas histórias, apenas e tão somente, repetindo feitos, enquanto a chamada geração passada, os que já escreveram uma história, lutam para continuar fazendo o que já fizeram!   Repetem e repetem  e repetem incansavelmente suas mensagens e seus estilos. Nada de novo! Só o que já deu certo.     Há os que imitam e os que imitam-se.      Apenas reproduzem! Remedam sem perceberem que essa prática é o fim da arte.
Esse texto é, sim, uma queixa!  Mais que uma queixa, um lamento.  Até os entendo, pois que fazer algo novo ou se reinventar, é como escrever um livro de muitas páginas, desde o seu prefácio; exige tempo, renúncia e exige renovação de pensamento. É repensar, inclusive, a forma de expressão artística, é rever os frutos do ministério pessoal, o que é desafiador.
Para quem está de fora, apenas assistindo, dois minutos lhe bastam para decidir se gosta ou se não gosta, se vale e o quanto vale,  se não vale… o quanto não vale e, sem avaliar o preço exigido para quem se lançou nessa tarefa, se é bom ou se é ruim.   De novo, só a avaliação de terceiros, já faz com que o novo não aconteça, já que somos apenas produtos manipulados por outros.
Tenho sim, o santo direito de ser feio, de ser sem graça ou sem atrativos, tenho o bendito direito de fazer e não dar certo, e tentar de novo. Tenho direito até de ter as minhas próprias trevas no meu interior, ter cantos ainda endurecidos no meu coração, onde eu escondo as minhas invejas, os meus ódios, minhas inseguranças naturais, assim como tenho direito aos meus cabelos pixaim, sem que me sinta obrigado à alisá-los, tenho direito até a desfilar minha calvície, sem que necessariamente a notem e a comentem ou me façam menor. Não as considero doenças vergonhosas! E tenho ainda o direito, de proibir que se escandalize em mim, já que tais fatos apenas pertencem à minha natureza ferida. É a minha natureza tão próxima da sua.
O problema é que esperamos demais das pessoas e, pessoas estas, tão humanamente diferentes. Como não somos e não temos tudo o que esperam de nós, juntamo-nos a outros ou não, mas passamos a imitá-los como fazem os primatas ou os papagaios brasileiros, à fim de termos em nós o que acreditamos não possuirmos e, pior ainda, o que acreditamos ver somente no outro.
Vivemos então uma espécie de culpabilidade inconsciente. Temos em nós, sempre, a impressão de que não somos o que deveríamos ser, enquanto lutamos para não sermos rejeitados.
No meio de todos esses tão nossos elementos, que em nós carecem ser transformados, purificados, no ato de estabelecer relações, adquirir amizades, produzir e ser, são sempre tão hematogênicas. No lugar comum, nada se cria, tudo se copia. Sugamos de outros o seu melhor, já que não o possuímos, numa pressa invejosa e oportunista que acaba por nos fazer menor.
Como hoje tudo é relativo,  proporcional, descobre-se o que fez o outro dar certo e apenas sugo-lhe o sangue tão precioso, que eu não possuo, mas desejo. Não tenho, mas quero.
Essa prática pode ser definida  como  Hematogenia.  Veja: Curitiba é a capital dos parques. Todos esses parques são muito grandes, com grandes árvores, grandes lagos, quadras, lanchonetes, enfim…  Perto de minha casa temos um, onde sempre vou com meu netinho, Benjamim , de quatro anos, para que ele ande de bicicleta, jogue bola, corra e brinque com os patos, os gansos e os peixes lhe vem nas mãozinhas para comerem. Dias atrás, ele se encantou com umas plantinhas que nasceram nos troncos de uma grande árvore, ao que me perguntou: “ Vovô, a grandona , é a mamãe das pequenininhas?”  Ele me deu a oportunidade de lhe ensinar sobre hematogenia. Pude lhe explicar que as plantinhas pequenininhas grudaram-se ali, porque sem a árvore grandona as pequenininhas não sobreviveriam. Lhe contei sobre algumas espécies de morcegos, esses mamíferos voadores chamados de morcegos-vampiros que sugam o sangue de outros animais e aves porque precisam do sangue que eles mesmos não possuem. Imagino que você conheça muitos “morcegos” que, sugando, levam o melhor de alguém e se fazem, pelo menos temporariamente.  A hematogenia é mais comum do que podemos pensar ou imaginar. É mais fácil existir através da hematogenia do que produzir seu sangue,  viver e ser às custas dele.
O meio cristão me tem feito pensar nessa prática! Não me refiro aqui ao dinheiro que sugam, à exploração da pobreza, os desvios, a exploração da ignorância alheia e que chamam de atitude de fé, tais como água ungida, rosa ungida e um sem fim de opões ungidas, já que essa hematogenia merece um capítulo só dela – o que lhes prometo!   Penso aqui naquela mais sutil, a menos observada. Me refiro àquela que faz com que caminhemos mascarados de outros, a que não nos permite sermos nós mesmos e nos obriga, para sermos alguém ou alguma coisa, sugar o sangue de alguém. Chamávamos isso de “beber na mesma fonte”. Todavia, tal fonte criou cópias, só repetições baratas  de alguém. O segredo é “se o ‘irmão fulano’ deu certo no ministério e na vida, pregando desse jeito, também eu vou pregar igual a ele. Pregar agressivamente, esmurrando o púlpito, fazendo caras de bravo e em tom nervoso, convence e até cria o tal do ‘reteté’, então quero pregar assim.”

  A fim de melhor ilustrar para um melhor entendimento, insisto mais claramente: a cantora Shirley Carvalhaes deu certo (e muito!) cantando assim (o que eu amo!) , logo vou cantar igualzinho a ela ! São práticas hematogênicas que precisam ser repensadas. Veja que, num mesmo culto, é comum a fila de irmãs pedindo para cantar, meninas ou não, que usam os mesmos playbacks, ou playbacks que são,  apenas cópias uns dos outros (questão de produtores e arranjadores que preferem apenas copiar!) e repetem interpretações, cantam no mesmo tom ou até fora do tom, apenas para usarem os tais playbacks.     Repetem-se nas “cantoras”, enquanto as duplas, ainda querem ser “Zezé de Camargo e Luciano dos crentes.  É exigido que as músicas sejam de apelo comercial, com poesias de um evangelho triunfalista e cheios de apelos emocionais. Enfim, eles sonham em ser iguais aos artistas gospel.     O que é ótimo para os artistas, porque lhes dá mais mídia e, logo, mais vendas e mais agendas, mas é péssimo para quem os copia, já que estão sendo manipulados e não construídos com o direito de serem eles mesmos. A grande maioria daqueles que assim fazem nem sempre  o fazem na intenção de copiar, mas até por não ter consciência de si, o que é bem pior, já que demonstram uma enorme falta de ensino.
Creio que posso ser julgado negativamente por minha opinião exposta aqui, mas isso é o de menos, quando em nossas comunidades cristãs estamos criando pessoas demasiadamente exigidas com tão pouco para dar. Sendo a igreja um lugar de cura, ainda estamos impedindo seus crescimento, quando deixamos de ensiná-los o como se reconhecerem em Cristo, sendo quem são e, finalmente se aceitem como são  para produzirem à partir do que de fato possuem.
Do contrário, serão crentes frustrados que carregarão bloqueios enormes, neuroses “cristãs” profundas e, ainda, culparão a igreja e a Deus por não terem se realizado, por não terem sido tão úteis  em suas comunidades  ou por “profecias fantasiosas” que nunca se cumpriram.
Estes irmãos tão queridos, precisam ser ensinados a “despertar o dom” que há neles e não apenas à reproduzirem. Se cantar é de fato uma chamada, que o faça de sua própria maneira, partindo de um despertar de dons, usando o seu próprio potencial, sua força de interpretação , buscando professores, métodos interpretativos que respeitem temperamento e personalidade.      Humanamente, para eles, parece um desafio  impossível, mas porque é mesmo impossível que lhes seja despertado dons e não sejam apenas cópias menores de outros, é o que lhes dará a certeza de que foi de fato Deus  quem lhes deu dons e os chamou, a fim de poderem edificar outros em suas necessidades como corpo de Cristo. E isso é o que há de mais belo em nossas igrejas:   pessoas humanamente tão diferentes, com vozes tão diferentes, dons diferentes, formas de pensar tão diferentes, vindos de culturas muito diferentes, de classes diferentes e até de países diferentes. A igreja mais linda e mais atuante é aquela que abraça e ensina a grande diversidade que somos e mostra os diversos dons e serviços onde todos são necessários. Assim, terminaria, inclusive, o espírito de disputa e inveja que temos em nossa comunhão, o que também obrigaria a cada crente, a ultrapassar suas simpatias e suas antipatias para amar o outro com suas diferenças.
Além do que se reconheceriam em Cristo e não em seus  ídolos  falhos e humanos e,  logo, não se escandalizariam e nem se entristeceriam quando soubessem que “um tal” cantor gospel famoso, objeto de desejo como modelo para os “irmãozinhos”  (é assim que os grandões os chamam: irmãozinhos ou queridos! ) se declarou o melhor de todos, ou que “aquela irmã profeta”, se acha a última bolacha de chocolate suíço do pacote.
Comecei a cantar aos cinco anos de idade, e logo percebi que eu era mais aceito, até pelo meu pai, se eu cantasse bem alto na igreja. Assim, cantando, me tornei o “arroz de toda festa”, me tornei necessário, imprescindível. Aos quinze anos, fui convidado para gravar o meu primeiro LP e logo fui parar na maior gravadora evangélica da época. Lá, estavam os “maiores nomes“ da nossa música evangélica.
A voz exigida e admirada era a do querido amigo, Ozeias de Paula!    Era a voz que estava vendendo. Insinuaram-me claramente , que eu podia ser “o novo” Ozéias de Paula. O garotão não sabia que o Ozéias só tem um: ele mesmo! Assim como só tem um José Pimentel de Carvalho, assim como só tem um Moody, um só Josias Meneses, um só Elon Cavalcante e, quando eles se vão, fica apenas sua arte, sua história, seu exemplo. Ninguém se torna eles! Existe “um” só você e “um“ só de você e você é responsável por você ser!
Passei a explorar os meus agudos apenas e, só não fiz mais, porque o meu amigo Edison Coelho, que fez toda a pré-produção do Lp Campos Brancos, me tirou do lugar de conforto que era cantar exatamente igual ao Ozeias e me exigiu explorar os médios e os graves. Mas mesmo assim, a partir daí, passei a ser lembrado como, “aquele cantor que canta igual ao Ozeias”. Quando produzi o “Dai Louvor ao Rei”, busquei ser eu mesmo, mas o mercado da época insistiu em me proibir caber. Disseram que eu estava muito moderno, estava muito “pra frente”, estava muito “sem terno e gravata”, estava “muito reggae e muito rock”.   Mal sabiam que eu não “estava”, mas eu era.
Apesar de  Ozeias de Paula ser uma boa fonte a ser bebida, entendi que eu tinha o compromisso  de ser apenas “o Ronaldo Reis”, e isso  de eu ser eu era por minha família, para meus filhos, para o Reino de Deus e para mim mesmo. Eu precisava sair daquela engrenagem.
Me achar em Cristo, me fez achar a minha voz e a minha maneira de cantar. Nem melhor, nem pior. Apenas eu! Ser e viver a partir do apelo profundo de minha pessoa me tornou livre para descobrir quem sou eu e o que tenho recebido de Deus para ser útil ao Reino e podendo produzir em qualquer lugar, em qualquer situação ou condição e ainda com múltiplos dons. Me deu identidade, pessoalidade para pregar, para ensinar ou para cantar, entendendo que dons são para serem multiplicados . Os hematogênicos precisam saber que eles podem produzir com sangue próprio, e assim, serem mais úteis ao Reino de Deus, afinal “numa casa, tem muitos vasos”!  ( ll Timóteo 2:20)

Por Ronaldo Reis

Um comentário em “Geração Hematogênica

  • 10/04/2020 em 15:52
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    Excelente reflexão! Me lembro bem desse disco “Daí Louvor ao Rei”. Era algo novo, inovador e arrebatador. Lembro que ouvíamos sem parar em casa e quando queríamos apresentar algo novo é original aos jovens, era esse LP que apresentávamos!
    E vibravam conosco! Adorei conhecer esse lado da história.

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