Desculpaí, vida.
Descupaí, vida! Me desculpe, mas… eu vou precisar morrer. E, aqui, não me refiro à alguma linguagem figurativa, daquelas filosóficas ou até teológicas. É morrer mesmo. Não que essas figuras do “morrer” não signifiquem o morrer como o morrer mesmo, mas aqui me refiro a morrer na minha existência em você, me refiro ao “perder a vida”. Essa vida daqui. Me refiro ao morrer como qualquer ser vivo morre! Como qualquer gatinho morre, como qualquer peixinho morre ou qualquer plantinha ou cachorrinho morre.
Eu vou precisar finar, expirar, falecer, sob qualquer condição ou circunstancia. Me refiro àquele tipo de morte que o sujeito passa a ser chamado de defunto, falecido, defuncto. Aquela morte mesmo, que pede uma caixa grande de madeira, que é quase uma embalagem onde colocam o defuntado, um ataúde, uma urna funerária, um esquife ou como você quiser chamar.
Desculpaí, vida, mas eu sou morrião! Sou tão comum e tão morrível que mais pareço como uma erva nativa. Sou como as rosas vermelhas ou brancas cultivadas como ornamentais até não interessar mais. Sou como ervas dos passarinhos, morrião-dos-campos, planta herbácea, sou como o morrião-d’água de flores diminutas e frutos capsulares; sou como o morrião-de-inverno, como morrião-dos-fogueteiros.
Descupaí, vida, mas eu sou mortal, sou morredor e vivo como nunca, num constante morredouro que logo logo me fará decrépito, frágil, desprovido de vigor já que minha característica maior é a de que eu sou de pouca durabilidade. Sou transitório, passageiro.
Desculpaí, vida, mas já já estarei afrouxando, perdendo as forças mesmo! Perdendo o vigor, o viço, o brilho e isso de modo gradual e lento. Na verdade, estou já desaparecendo numa floresta onde ninguém mais ouvirá minha voz.
Desculpaí, vida, mas vou abotoar o paletó, vou apagar, bafuntar, descansar! Olha, vida, chame como quiser, depois de me embalarem (ou não!), depois que eu desviver, podem dizer que eu empacotei, apaguei! Podem espalhar por aí que eu descansei, espichei, bati as botas, que fui morar na cidade-dos-pés-juntos. Haverá gente, até dizendo que eu desencarnei!! Problema deles. Os mais coerentes vão dizer que eu sucumbi, expirei, faleci. Os mais conscientes vão dizer que eu dormi no Senhor. Alguns engraçadões vão dizer que eu bati a canastra, bati a caçoleta, assentei o cabelo, bati o pacau, bati o trinta-e-um, botei o bloco na rua. Confesso que vou gostar mais dessa última.
Alguns perversos dirão que fui comer capim pela raiz, dar a raiz, dar com o rabo na cerca. Eu até já sei, vida, que alguns maldosos e inescrupulosos dirão que eu desinfetei o beco, espichei a canela, estiquei o cambito, fui p’rás cucuias, virei ossada. Mas também sei, vida, que os amigos dirão que eu fui para um lugar melhor, que o meu espírito se rendeu . Já estou ciente que defronte à embalagem, a minha embalagem, alguns desorientados dirão que eu vesti o paletó ou o pijama de madeira, que virei presunto, afinal quem não me deu dignidade em vida, porque me daria a tal na morte? Quem não foi cortez ou educadinho comigo em vida não o será na morte.
Desculpaí, vida, mesmo que o meu fim se aproxime quase lentamente, depois do meu apogeu preciso chegar ao fim de minha trajetória, de um percurso doloroso que me custou você! Preciso finalizar a trilha, ver o meu rio morrer no mar. Extinguir-me como morre uma idéia, como morre uma tarde, como morre um dia… um pouco a cada dia.
Ah, vida! Só não quero morrer de dor de cabeça. Só não me deixe morrer de intensa dor! Nem física nem moral ou espiritual. Não me deixe, vida, morrer de paixão, abandonado em seus prazeres! Não me deixe morrer de decepção. Não me deixe morrer de amor e nem para o amor. Para isto, não deixe que na garganta morra a minha dor.
Vamos combinar uma coisa, vida: me faça morrer de rir! Pronto. Está decidido! Você me faz gargalhar de ti… me faça morrer de rir! Depois, relaxo e acho que de tanto rir, me deito assim nos seus braços e morro! E, depois, a gente sorri e você me deixa ir. Eu sei que para morrer assim, eu preciso viver! Na mais pura expressão da palavra. Preciso viver meus cerrados, minhas matas e caatingas. Enquanto vivente, não quero parecer murcho, ressequido em humor e nem rígido como você , vida, já tentou fazer comigo.
Oh, vida! Por enquanto, pelo menos por enquanto e para sempre, finalmente, me permita entusiasmo, vigor, vivacidade, me deixe viver animado! Me faça dotado de inteligência, perspicácia, ladino, esperto, matreiro, divertido e até engraçado. Vida! Me faça sentir e fazer sentir. Me faça intenso, brilhante, ativo! Que eu nunca caiba num pequeno quartinho apenas.
E que você, vida, me seja intensa, desembaraçada, diligente, penetrante e principalmente pertencente. Duradoura, sim, mas cheia de idéias, emoções, perspectivas e significativa. Cheia de ardor, de animação e entusiasmo. Vida… me faça atento, vigilante! Me faça como aquela canção “Reconhecimento”, gravada em 1983 , pelo tão conhecido e tão esquecido Conjunto Novo Alvorecer: “certo de minha fraqueza, eu venho pedir, Senhor, dá-me a astúcia do esperto, a certeza do certo, um sorriso aberto. Coberto de amor, dá-me, Senhor. Só, sem saber, sem sorrir e eu quero ser forte, sem cansaço, sempre firme em cada passo… coberto de amor, dá-me, Senhor”. Até porque eu não quero perder o prazo de validade, preciso ser vida, dotado de vida já que ainda estou vivo.
Preciso de um vivório, de aclamação de vivas por parte de minha plateia enquanto estou vivo. Bem mais que isto, bem mais do que estar vivo, vida, eu quero ser vivificador. Quero dar vida, animar a vida, restituir a vida, reanimar a vida, reviver mortos em vida, fortalecer fracos, fertilizar, incrementar a vida alheia. Só assim, vida, quando me embalarem, dirão que eu vivi.
Vida! Me dê as brincadeiras com meu neto, aquele emoção acalorado que me deixa suas pegadas depois da chuva em terra molhada. Oh, vida, não me retires as conversas longas com os meu filhos… os meus! O olhar cuidadoso da esposa, as críticas de minha mãe, as pequenas brigas dos meus irmãos. Isso é central, é essencial! É cerne, é organismo abaixo e acima da epiderme.
Vida… para que eu não venha a ser apenas um defunto desbotado, um morto indolente e pálido, me faça morrer como vivi. Me faça morrer travesso, vistoso! Ainda que naquela caixinha eu pareça tolo, lento, vagaroso e até morto. Quero que elogiem o meu terno (aliás, quem vai escolher sou eu e já! Meu povo não vai saber fazer isso, já que sempre me acham exagerado), quero que percebam a gravata slim combinando com o resto, inclusive com a embalagem. Que no desnecessário costume da falta dos sapatos (se pudesse eu usaria um cromo alemão) eu desfile um par de meias daquelas que eu gosto! Coloridas… vermelhas…floridas! Por favor, vida, não me faça menos que isso.
Sei bem que “ne sutor supra crepidam”, traduzindo do latim, “o sapateiro não deve ir além da sandália”, todavia acredito na verdade prática que diz, “qualis vita, finis ita”, ou seja, “tal vida, tal morte”. Não pode morrer bem aquele que viveu mal e, logo, os que te vivem bem, vida, morrem bem.
Então, só te peço, vida, que digam que eu voei finalmente, que me movi para o ar exatamente como sempre fiz enquanto em ti. Digam que criei asas, que finalmente me tornei flexa e acertei o alvo e que finalmente venci! Apesar de não ser verdade, deixe que digam que eu virei anjo! Que a morte me faça cenários, que eu seja apreciado sob uma nova ótica, numa nova panorâmica que possibilita me colocar em um único plano, que só é possível ao olho humano ver por meio da memória, lá onde todo defunto ganha status de mega qualquer coisa. Que, vida, na minha morte, as minhas imagens sejam ampliadas e reunidas em encantamentos. Que eu seja então e para sempre, arte contemporânea, beleza e grandiosidade. Que eu me torne espetacular, que me vejam humano como nunca me viram antes. Que consigam me perdoar por tão gigantesca humanidade. Que eu deixe estruturas e dimensões. Que façam de mim fotografias penduradas, porta-retratos nos aparadores decorando espaços, sendo ainda necessário. Que na morte, na minha morte, ó vida, eu exista além dos olhos! Afinal, apesar de viver morredouro, Deus em Cristo Jesus, me tornou imortal.